Todos Nós Estranhos (All of Us Strangers)
Nossa solidão, nossas dores, traumas e histórias: elas são nossas ou também de todos os outros com quem as vivemos e compartilhamos?
O novo filme do cineasta Andrew Haigh conta uma história comum a uma primeira vista: um homem na casa dos 40 anos, Adam (Andrew Scott), leva uma vida solitária em um flat num alto edifício em Londres - sua vista é da cidade, tão cheia, tão viva mas tão…cinza. Ele é escritor, bonito, mas parece que nos primeiros momentos do filme ele é um incorrigível tímido; ou seria algo mais?
É interessante pontuar aqui que esse filme só irá funcionar (e funciona) pela belíssima condução de Andrew Scott, que muitas pessoas podem conhecer como o Padre de Fleabag (2017); ele na pele de Adam, tem uma atuação física muito delicada e cheia de pequenas tensões que transbordam em cena. Quando um alarme soa em seu condomínio, logo nos primeiros 10 minutos de rodagem, ele simplesmente desce, calmo, apático mas que que admirado, para observar olhando pra cima através da rua. Esse Adam assustado logo irá conhecer, depois desse incidente, um vizinho chamado Harry, que é vivido pelo igualmente maravilho Paul Mescal - o novo queridinho e galã da internet entre millenials e geração Z.
Harry é um homem simples: convidando-se para entrar no apartamento de Adam, com um certo otimismo do que pode acontecer naquela noite, ele é esmagado pela tensão e timidez do outro lado da porta, que quase o deixa entrar mas… isso seria demais. Adam, sendo escritor, usa músicas para aparentemente se inspirar e clássicos dos anos 80 fazem parte disso. Essas músicas se incorporam na trilha, deixando todo o cenário com clima de anos 80, muito embora se passe na conteporaneidade. Quando Adam se sente preso em si, vai até um parque para, de novo solitário, observar a vida acontecer. Veja bem: não é necessariamente triste ver um personagem em uma jornada solo, mas ao olharmos para Adam, é visivelmente invisível que ele luta contra algo que não conseguimos decifrar, mas parecemos saber. Quando, ao andar por uma extensa área verde e límpida, sozinho, encontra um homem com trajes setecentistas e também sozinho, a mágica se desenrola.
Adam conversa com o homem que parece não vê-lo há muitos anos. Surpresa, desconforto e uma certa contenção de ambos os lados. Ainda assim, ele aceita o convite para ir na casa do homem e ver, lá, junto a ele, a esposa. O casal é interpretado pela monstruosa (de forma positiva e sempre) Claire Foy e o surpreendente Jamie Bell. Esse casal carinhoso, que rapidamente o convida para entrar e ouvir músicas enquanto bebem algo quente e fumam são os seus pais.
Nota: Sim, a Claire Foy de The Crown e Entre Mulheres.
Esse encontro é tão estranho quanto soa ao ler e escrever. Como Adam, um homem formado, inteligente e de bom senso consegue imaginar essa peça em sua mente? E aqui o filme, para mim, mostra seu grande mérito e brilho: não precisamos, nem devemos saber. Logo fica rapidamente claro que, ao ter perdido os pais tão jovem, não pôde compartilhar com eles os passos mais importantes e significativos da sua vida. Seu trauma do luto e da perda se arrastam pelas bordas da sua própria vida, com frustração e medo sintomáticos para deixar que alguém entre em sua vida: Harry. Quando finalmente eles se conhecem e se tocam, Adam parece virar a chave que precisava para assumir uma coragem de merecer ser feliz e viver plenamente como nunca antes.
Para não revelar tudo que a trama oferta de forma rasa, vou tentar apenas resumir em uma reflexão que enquanto pessoa também quer tive assistindo e, acima de tudo, sentindo o filme: fantasmas do nosso passado nunca estão fixos apenas lá. Com todo avanço social, cultural e de representatividade que tivemos, ainda é muito difícil olhar para trás e perceber que muitas vezes, em retrospecto, a dúvida nos aniquila por dentro ao não sabermos exatamente como seria nossa vida se alguém não tivesse dito algo, se alguém ajudasse, entendesse, ouvisse e fosse escuta ativa para nossas descobertas e inevitáveis frustrações do caminho.
Adam vive isso, em tempo real e retrospecto, ao mesmo tempo. Um destaque absoluto é quando, em diálogo com sua mãe, sozinho, naturalmente conta sobre ser gay e ela faz uma mímica muito pontual de qualquer dona de casa dos anos 70 ou 80: é seu filho, ela o ama, e se assusta. “Você é feliz?” - uma grande pedrada num coração já ferido, mas que pode ser reparado e afagado novamente.
Enquanto tudo isso se desenrola, a sua relação com Harry se torna cada vez mais íntima enquanto ele consegue, de certa forma, resolver seu luto sobre seus pais. É como se tudo que percebemos no início estivesse desenrolando em um homem que mesmo agora está se abrindo para que alguém também consiga entrar em sua vida e estar presente como talvez ele sempre desejou que seus pais fossem: observamos uma relação que começa apenas sexual como uma em sintonia, companheirismo e cuidado das duas partes, que em cada toque expressam uma ternura delicada que talvez Adam há muito tempo não se permitia sentir. Os dois caminham juntos mas também separados em um destino final que é avassalador mas também reconfortante - tentando explicar de maneira leviana e extremamente leve aqui.
A ideia de que temos sentimentos de culpa de coisas que nunca aconteceram ou sequer podem acontecer, sentimos com Adam esse peso do mundo que nos isola e ao mesmo tempo nos faz buscar validação e amor - o amor de estranhos, de amados que se tornam estranhos ou o nosso próprio com nossa autoestima que também pode nos estranhar gravemente quando esses pensamentos e, às vezes, revelações chegam em nossas mentes. O agridoce de ’Todos Nós Estranhos’ acontece quando notamos também os detalhes que fazem a cola entre todas essas relações, em cenários quase sempre cheios de gente, mas vazios de nós: é avassalador se reconhecer, mesmo em micromomentos, nos momentos mais difíceis dessa história - mas também é fascinante e que um processo de cura. Mas sempre desejamos que talvez essa cura não aconteça quando seja tarde demais, muito embora nunca tenhamos ideia de quando seria esse “tarde”.
Todos Nós Estranhos estreia nos cinemas no dia 29 de fevereiro.
O filme irá contar com legendas em português e audiodescrição.