Superman: ser gentil é punk rock demais
Mesmo pra quem não gosta de filme de super herói, Superman traz a ideia radical que ser incrível não é brigar com bicho gigante e destruir cidades: é ser gentil
Eu não AMO nenhum super herói ou filme desse ‘gênero’ cinematográfico. Eu simplesmente acompanhei vários lançamentos gigantescos, enquanto o auge deles acontecia — era bem difícil que um filme tipo Vingadores passasse despercebido, né?
Em um ou outro filme desses eu sentia uma identificação um tiquinho maior, como em Capitã Marvel, Guardiões da Galáxia e Homem Aranha no Aranhaverso. São obras muito, muito pipocas pra assistir sem tanto compromisso com a realidade, meio que despretensiosamente; mas que trazem no roteiro algum nível de abordagem importante emocional ou social. Acho que um filme muito lembrado por isso é Pantera Negra também, já que a gigante repercussão internacional e o conflito entre o ‘vilão’ e mocinho do filme abriam debates para uma alusão muito real sobre conceitos de excelência preta, vivências decoloniais e afrofuturismo. Apesar de existirem muitas críticas sobre isso tudo que citei, e muitas partindo de teóricos e formadores de opinião sociais, o fato é que o filme deu certo por ter resultado nesse mar de ideias e discussões que muita gente podia participar.
Pensando nisso, como começo a falar de um filme de um super herói que nasceu antes da segunda guerra mundial e que era um símbolo fortíssimo estadounidense? Aliás… como começo a dizer aqui que, apesar de ter minhas 1 milhão de ressalvas com esse patriotismo e militarização em tela que filmes desse tipo divulgam… eu… amei o novo Superman de James Gunn.
Pronto, eu disse! Ufa. Não que isso mude a vida de ninguém talvez lendo isso aqui num ponto de ônibus ou no sofá de casa, mas parece que os ventos do norte que já não moviam moinhos andavam, além de tudo, gélidos e inóspitos, de forma que quase qualquer filme de super herói mais recente tivesse um flop gigantesco e de repente uma maioria notasse que não era tão cool assim bater palma pra estadounidense dançar. Mas é aqui que começo a dizer que esse Superman não é SÓ norte-americano. Ele é humano, do mundo, da Terra toda - e olha que ele que escolheu isso.
Superman é tecnicamente um alienígena e nessa nova adaptação, em menos de 10 minutos isso tudo é muito bem posto e resolvido: ele caiu na Terra, veio com uma mensagem do seu planeta natal Krypton e basicamente tá aqui pra ajudar seres humanos com seus probleminhas. Isso não é novo, já que de fato essa sempre foi a história de origem clássica dele; mas aqui, já nesse comecinho, percebe-se que Gunn quer trazer de volta algo desse personagem que talvez só tenha sido feito lá nos anos 70/80 com os primeiros filmes dele: mostrar pra audiência que essa figura humanoide, de cabelos pretos, olhos azuis e corpo musculoso é só mais um cara.
No dia a dia, o homem deixa o super e é o simples Clark Kent (David Corensweat) - um cara na boa, do bem, com tudo e todos. É um jornalista desajeitado do jornal Planeta Diário, que consegue seus bons furos de reportagem e histórias com suas próprias aventuras quando coloca o cuecão vermelho pra jogo. Ele é um fofo, um gigante admirável, mas fofo. Clark, com seus óculos pretos, pasta e postura de ombros encolhidos, poderia ser qualquer cara inseguro que a gente vê por aí, só que sem usar essa insegurança pra alimentar o próprio ego masculino com conteúdos incel. Mas tem um cara que faz isso.

Lex Luthor (Nicholas Hoult), vilão clássico da saga Superman, obviamente também tá aqui nesse filme. E ele é pra mim o primeiro explícito indício de que Gunn criou uma história também clássica, mas com muita inspiração no surto coletivo social que a gente tá vivendo. Luthor é um cara bem vestido, bilionário, relativamente bonito e inteligente, mas decidiu colocar tudo isso no saco porque lá dentro é inseguro. Pra ele, o Superman é uma ameaça pro mundo, um alienígena perigoso, um agente do caos que quer mudar a vida das pessoas pra pior. Qualquer semelhança com um bilionário real dono de uma empresa de carros autônomos e uma cenoura loira presidente e falante são meras coincidências, claro. Fica difícil acreditar tanto assim quando, é claro, momentos tipo esse NÃO saíram de um filme de herói, mas sim de um debate presidencial:
E quando seres humanos tipo o Andrew Tate, um influencia incel gigante, existem e também compartilham de uma lustrosa careca. Mas enfim…
Luthor quase sempre, durante todo o filme, tenta vender a ideia que esse perigo do Superman gera também uma crise política que resulta em um conflito por território, num mapa fictício que lembra muito o nosso real na situação israel e Palestina. E é aqui que percebi que Gunn, mais do que fazer um Superman como os anteriores recentes do Zack Snyder, que paira no ar com sua capa como um deus e observa seu infinito poder… quer trazer essa figura pra perto da gente, seres humaninhos quaisquer.
Nietzsche e seu conceito de ubermensch merece mais que uma anedota aqui. A similaridade entre a tradução literal de ubermensch e super-homem não é por acaso: tal ser humano seria a ideia mais evoluída nossa, pensando que a evolução pra Nietzsche não teria estacionado simplesmente no homo sapiens. Essa pessoa seria uma versão elevada de si, conquistando etapas da vida e usando-as para evoluir ainda mais com ou sem participação recíproca social nisso. É uma pessoa que está além das dicotomias de bem e mal, mas sim usando essas ideias para ter um melhor sendo de julgamento para tomar decisões acuradas para cada situação. O Superman desse filme poderia ser tudo isso, e meio que é: ele tem o poder físico, mental, capital social como super herói para tal. Mas escolhe simplesmente abdicar dessa ideia de evolução a todo custo pra si, e entregar de volta para os humanos que o acolheram quando ele caiu dos céus numa cidadezinha do Kansas. O Superman não renega seu poder ou potencial, mas convivendo na Terra percebeu que precisaria, com certeza, abdicar do seu próprio ego. E meus amores, nesse filme eu vi um super herói genuinamente preocupado em colocar os direitos humanos acima de sua própria imagem e musculosa aparência.
O David Corensweat, ator do Super, teve uma tarefa dificílima: conquistar pra si o personagem, vivê-lo, aprender como articulá-lo e ter muita paciência para as inevitáveis comparações que iam surgir com o ator anterior, o Henry Cavill. Analisando os próprios atores e respectivos roteiros com os quais trabalharam, digo tranquilamente que David conseguiu superar, também, o próprio ego como ator quando colocou o traje em si. Cavill é um ator mediano, mas que conseguia brilhar pela abordagem naturalista e incólume de Zack Snyder. O Superman em Homem de Aço é super forte, imponente e sério, e tudo bem: o problema é que será que a gente quer mais disso?
Filmes de herói por uma boa temporada acabaram tentando replicar demais o nosso mundo real. Digo isso sem juízo de valor, porque meio que literalmente toda obra fictícia parte da realidade. Mas acontece que quando isso vira uma obsessão, o elemento fantasia se perde, e devo lembrar que obviamente não existem super-humanos e portanto sim, isso tá dentro da fantasia e ficção científica. O problema pra mim é que enquanto isso acontecia, simultaneamente existiu uma tentativa muito, muito rasa e pífia de inserir esses filmes nas discussões políticas. Se criavam contextos que poderiam, sim, existir na vida “real”, mas a ótica unicamente norte-americana e militarizada prejudicavam todas as histórias.
Aqui, por puro interesse do vilão, um conflito armado com vítimas civis incomoda o Superman. A militarização não vira espetáculo, pelo contrário: é assustadora. Existem muito mais cenas de conotação negativa que positiva quando seres humanos, heróis e armas pesadas estão em cena. O terror de uma invasão com tanques, armas e soldados se torna quase que fidedigno até demais, fazendo a gente perceber que nem tudo é musiquinha épica com câmeras lentas e closes em atores belíssimos. Gente comum frequentemente entra em cena aqui, e junto a elas, uma figura que de fato aparece para ajudar sem julgar. Superman aqui entende também a disparidade que classe e etnia podem ter, quando argumenta com sua namorada Louis Lane (Rachel Bosnahan) que independente de política e de “lados”, uma população sem poderio militar estava sendo oprimida e massacrada por outra, que tinha apoio financeiro, político e de Luthor. E isso é injustiça social. E esse Superman entendeu que diante de injustiças, ele pode ser uma esperança pra quem já não tem outras opções.
Em vários momentos percebi que isso também conversa com uma ideia que articulo que é a meritocracia do corpo. É um conceito que acredito, claro, ter origem na eugenia clássica, mas que se modificou e absorveu o blábláblá de meritocracia que muitos capitalistas defendem. A ideia de que, por exemplo, uma pessoa obesa não poderia reclamar de falta de acessibilidade em um avião porque pra muita gente desinformada ela própria “escolheu” comer mal e ser como é. Isso tá ficando comum até demais, também, quando pessoas com deficiências compartilham situações parecidas nas redes sociais; sempre tem um espertinho que chega com discurso eugenista disfarçado de motivacional, inclusive até mesmo partindo de outras pessoas com deficiência. Sabe aquelas fotos de ‘inspiração’ com uma pessoa amputada numa academia se exercitando com a legenda ‘QUAL É A SUA DESCULPA?’. É disso que tô falando e partindo também disso que conceitualizei esse termo.
Pois bem, Superman nunca seria esse tipo de gentalha. Ele percebe muito rápido que o corpo dele pode ser usado não para autocomparação e vitória sob o nosso, mas sim como instrumento, também, para a justiça social. A ideia de sobrevivência do mais forte sempre envolveu, pra quem não sabe, o amparo de comunidade desses supostos mais fortes. Sozinho, por mais forte que você seja, não vai chegar longe. Superman não apenas sabe disso, pois precisou e precisa de humanos mais “fracos” que ele para amar, rir, chorar, e se relacionar; como também usa sua força descomunal para proteger os mais vulneráveis. Spoiler: Superman SEMPRE foi, ou deveria ser, sobre isso.
Em um dado momento no filme Clark Kent transborda na sensibilidade humana demais com a Lois Lane e a frase ‘você acha que tudo e todos são belos; talvez esse seja o verdadeiro punk rock’ é dita. E pelo amor dos deuses. Nessa hora o filme me ganhou ainda mais, porque não só é o que acontece a história TODA nas mais de 2 horas de meia, mas também é algo que acredito pessoalmente e socialmente. A gentileza não é aceitar tudo, não é passividade ou permissividade, tampouco ser feito de idiota. Gentileza é conseguir entender ou ajudar quem você pode, com as ferramentas que possui. E aqui já me dá uma vontadezinha de lacrimejar.
Em várias cenas, esse conflito fictício que alude à realidade de israel e o genocídio do povo palestino é colocado de forma onde é possível a gente identificar essa inspiração (pelo menos pra quem é minimamente humano e informado). A ideia é que sabendo de seus privilégios, Superman também sabe que esperança é algo que pode se fragilizar facilmente, e é isso que também acredito e sinto que tá acontecendo do nosso lado real de cá. Um cinismo brutal toma conta de uma parcela de pessoas jovens que acham que nada vale à pena se envolver esforço, porque estamos em uma economia de recessão quase que mundial, tá tudo caro e o mundo não atingiu a paz que um dia a gente sonhou na escola ou pensou que ia acontecer. A gente (me incluo nessa demografia) tá percebendo cada vez mais pessoas aderindo a ideologias perigosas porém fáceis, como por exemplo os incels. Pela primeira vez, meninos jovens são mais machistas que os homens mais velhos e, pra piorar, políticos extremamente conservadores vêm ganhando eleições no mundo todo. É desanimador mesmo. Mas entendo que esse alarmismo negativo também pode ser perigoso e esse cinismo, paralizante. É como se todo mundo quisesse um mundo melhor, mas sem pensar em tentar ser alguém melhor porque talvez não valha à pena. Mas tem que valer? Será que fazer o mais justo não envolveria, justamente, fazê-lo sem esperar recompensas?
Eu sinceramente ainda tenho minhas próprias ressalvas quanto a isso. Mas o Superman também. Não pense que, por conta desse idealismo esperançoso, ele não aja de forma bruta quando preciso — ele age, mas apenas contra quem ele SABE que pode revidar da mesma maneira (LuthorCorp por exemplo). E acho que, lá dentro, todo mundo pode absorver algo com isso. É hora de transformar a gentileza em justiça social. E nem sempre isso vai ser a coisa mais alegre, legal ou good vibes a fazer. O que me lembra outra frase sobre gentileza vinda da minha série preferida da vida que também retrata um alienígena que pousa na Terra aprende a amá-la: Doctor Who. Em um momento especial na série com o magistral ator Peter Capaldi, ele CRAVA a seguinte pedrada:
Sempre tente ser legal, mas nunca falhe em ser gentil
E eu acho que é, realmente, sem ironia, sobre isso.
Saí do cinema, numa sessão antecipada gentilmente pela rede UCI de cinemas, me sentindo… feliz e esperançosa. Sendo a pessoa estética que sou, devo apenas comentar rápido aqui que o filme é, além de ótimo e suscitador de questões existenciais, BELÍSSIMO. É colorido, divertido em uso de câmeras e ângulos diferentes; com um figurino extremamente retrofuturista onde mesmo com um helicóptero quasi-alien redondo do Sr. Incrível, todo mundo tá se vestindo numa mistura de vibe anos 70 com contemporaneidade. Que delícia de experiência audiovisual quando um diretor entende, acima de tudo, que está adaptando uma história secular e que veio dos quadrinhos, sem precisar negar isso ou inventar uma nova roda.
Esse meu texto está saindo durante a semana pensando que, também, é geralmente mais barato pra assistir filmes no cinema nesses dias, e se você puder assistir esse numa tela grandona… é ótimo.
O mais importante é que caso você seja uma pessoa metade cínica e metade idealista como eu, tente pensar no que esse filme te evocou Tem muita gente legal e educada online abordando os vários temas e microtemas que Gunn trouxe pra essa estória e tô adorando ver conteúdos sobre. O algoritmo nocivo das redes, afinal, também parte da nossa responsabilidade de sermos gentis mesmo em discordância com alguém ou alguma coisa; nem todo mundo, claro, tá praticando isso, já que tem gente muito chata e ignóbil comentando que Superman virou superwoke ou coisa qualquer assim, simplesmente porque o filme demonstra tudo que comentei aqui.
Enfim… eu tô bem feliz que gostei tanto de um filme cujo eu cheguei no cinema animada, mas com aquela desconfiança de ser bobo até demais. Superman do James Gunn é definitivamente um dos filmes já feitos (quem sacou a referência sacou kkkk). Espero que assim como eu, caso você assista, sinta a mesma faísca de esperança em você. E lembre-se de ser gentil. Afinal:
Superman (2025) está em cartaz nos cinemas.
O filme está disponível com recursos de acessibilidade pelo aplicativo MovieReading.
Eu tava muito ansiosa pra escrever tudo que pensei e relacionei com esse filme! Se você leu até esse final, muito obrigada. Fico MUITO feliz em saber que você tá por aqui.
Em breve acho que tentarei voltar com mais textos sobre filmes, num geral. Sinto que pisei mais no freio nesse ano, mas quando começo a escrever sobre percebo que amo.
Por aí, desejo que
Fique bem,
coma bem,
defenda a Palestina.
Um abraço,
- Alice Melo
Depois da crítica do Pablo Villaça, mais uma que me dá MUITO motivo de assistir esse filme!