O que eu descobri só depois que meu pai morreu
Hoje seria aniversário do meu pai.
É estranho perceber que a cada dia 7 de abril, parece que vou aprendendo um tiquinho mais - e espero que aprendendo melhor também - que a minha única certeza sobre viver o luto de alguém que fazia parte de 90% dos meus dias é que: pra mim, desde que ele se foi a vida ali parou de pulsar, eu estive tentando não impedir que a minha parasse também.
Calma: não porquê a gente vivesse o tipo de relação inseparável de pai e filha ou que nossa convivência fosse tão legal que eu tivesse que lidar com o sofrimento dela não existir mais. Mas sim porque, de muitas formas, essa perda de alguém que estava tão perto me fez repensar tudo que eu fazia e já fiz. Desde o que eu poderia comer para não ter o mesmo infarto do miocárdio, até o que eu precisava fazer nas minhas relações pra não ter que passar pelo mesmo que ele.
O meu pai era um cara peculiar, com certeza. Crescido nos anos 60, sendo um menino inteligente mas com problemas de regulação emocional, ele conseguiu superar muitas coisas. A primeira delas, com certeza, foi o medo de se perder nas próprias questões que o tornavam diferente. Ele se entupiu, muitas vezes literalmente, pra que não percebessem que ele tinha suas manias e formas únicas de funcionar. Depois, superou a pobreza que tanto temia que não fosse sair: fez carreira, acumulou bens e patrimônios. E, por fim, sua última tentativa talvez tenha sido superar os ciclos de trauma que sofreu na família: essa superação era provavelmente a mais difícil de todas. Sem perceber - não só o meu pai mas quase todo ser humano - repete aquilo que viveu. Às vezes por nunca ter conhecido nada diferente, outras por falta de opções da vida e duas circunstâncias financeiras, logísticas, amorosas… ele definitivamente não soube como superar essa questão.
Eu acredito que viver o luto da ausência dessa figura tão dicotômica pra mim vem sido uma jornada parecida com a própria vida dele. Tento superar, uma de cada vez, as minhas próprias questões comigo mesma e que vivi junto a ele também. Por causa dos tempos que viveu, não acho que ele conseguiu conquistar tudo que conquistou da melhor forma possível. Cada conquista parecia ter que chegar com uma renúncia a alguma coisa, algum sacrifício. Ele sacrificou muitos momentos, perdões e concessões pra conseguir. Percebi uma coisa interessante assim que me vi sem ele no desespero pra tentar não repetir os mesmos erros: o medo de errar e de estar sozinha no final de cada falha estava me tornando o oposto do que eu queria ou precisava ser.
O meu medo de repetir os mesmos erros nem racional era. Eu não era vítima das mesmas circunstâncias, tempo ou infortúnios que meu pai viveu. Putz, nem homem eu sou. Nem alinhada na mesma sintonia política eu era. Nem homem eu sou, ou pretendo me tornar. Mas esse medo imponente e paralisante parece só ter aumentado desde a morte dele. É quase como se na ausência de uma pessoa de carne e osso para que eu tivesse pra onde refugiar toda minha revolta, agora existisse apenas uma sombra. E sombras podem existir a partir de quase tudo que existe. Só que tive uma epifania ao que considero ainda pouquíssimo tempo: tudo que apresenta sombra só o faz porque é um corpo, uma coisa, ou uma pessoa que existe. Se eu continuo sentindo essa sombra de uma pessoa que não está mais aqui… a sombra é minha, ela vem a partir de mim. E sinceramente? Quem não tem sombra, não existe. Eu existo. Eu estou aqui.
Essa coisa toda de ter sido uma criança muito peculiar (assim como ele) me ajudou e também atrapalhou. Todo sofrimento que passei na adolescência sofrendo bullying gerou uma ferida, mas também uma força que eu nem sabia que tinha. Todas as vezes que eu, no auge do desespero e fatalismo, tentei me autoexterminar… nunca deu certo. Era existir ou não existir, simples. O continuar existindo venceu fisiologicamente, mas psicologicamente, o sentimento de derrota ficava, e nessa espécie de Ying Yang da vida eu já estava, sem nem imaginar isso, me preparando para viver de um jeito mais libertador e sábio quando ele partiu.
Confesso que muito do que eu tinha como pessoa residia em ser uma menina e depois uma mulher que se sentia oprimida por aquela presença. Como um cara que superou tanta coisa ruim, acho que ele acreditava muito (como normalizam bastante na idade dele) que só existe crescimento se existir sofrimento. Era uma coisa meio masoquista, onde parecia que cada conquista da vida dele e da minha só merecia celebração caso tivesse sido difícil, penoso, abusivo ou lascivo. Vivendo como uma jovem atravessando muitas coisas de um cérebro adolescente e muitas falhas, eu achava que todo esse sofrimento na escola e na relação com ele eram não apenas normais, mas necessários para que eu crescesse. Muito embora eu tivesse que pagar o preço por pensar e agir como se isso fosse verdade: ainda sem saber das minhas condições genéticas e do autismo, eu me levava além de qualquer limite razoável e me esgotava constantemente. Só que secretamente, a cada esgotamento, uma partezinha minha ficava em festa, achando que aquilo era estar viva - embora todo dia, naquela época, pensasse em morrer. Dicotomia.
Essa forma de me maltratar achando que era isso que seria esperado de mim me fez perder muitas coisas. Até que, com o começo de uma pandemia global por causa de uma doença mortal, eu comecei a… mudar. Não por escolha totalmente consciente, do tipo que a gente se olha no espelho ou pensa pra si que “amanhã vou fazer diferente”. Mas eu fui mudando sem quase me dar conta, porque agora todo ruído do mundo, apesar de altíssimo, pra mim parecia ter diminuído. Era como se o fato de ter que ficar em casa e não interagir tanto assim quase fosse um afago pra meu cérebro, que não era nada natural em muitas interações. Ficando em casa, observando todo tipo de dinâmica, e depois vivendo dias de incerteza quando meu pai foi hospitalizado, entendi que existia a possibilidade de eu não ser mais uma vítima da sombra da presença dele. E eu estava certa, porque pouco depois do dia dos pais daquele ano, ele partiu. Ele deixou de existir no dia dia da nossa casa, vida e família. Eu, por outro lado, comecei a tentar existir sendo eu mesma a partir daquele momento também.
Quem eu era quando não estava sendo vítima do sofrimento? Quem eu era sem ser vítima das circunstâncias que ele criava? Quem é Alice pra além do medo de falhar?
Hoje, quase 5 anos depois da morte dele e no dia do que seria seu aniversário, tive mais um momento de cristalização de pensamento: eu sou a mesma Alice de sempre, só que aprendi a dançar e acolher minhas sombras sem culpar a dos outros pelo que eu faço, penso ou desejo.
Descobri, nesse período de tempo:
Sou uma pessoa que não precisa operar na mesma frequência que todo mundo. Sou diferente, só que divergindo do que meu pai me dizia e praticava com ele mesmo (que também era diferente), eu resolvi aceitar isso e tentar entender como posso usar essas diferenças pra viver bem.
Eu não preciso sofrer o tempo todo para sentir que mereço qualquer coisa. Essa ideia de que apenas pelo sofrimento que eu preciso construir toda minha personalidade e o que sou me causou um vazio existencial bem grande quando percebi que podia adaptar minha vida e que ele não estaria mais aqui para reclamar que eu não estaria fazendo por merecer. É MUITO difícil cancelar os pensamentos de autopunição ou autopiedade que eu tenho quando volto pro espiral de autovitimização. Mas só por tentar e saber que não vou precisar me justificar por isso, sei que tô melhorando.
Duas coisas podem e devem ser verdade ao mesmo tempo. Não acho que sejam contradições, mas, de novo, dicotomias. Meu pai conseguia ser muito amável ou cruel com suas palavras. Eu sempre atribuía a crueldade a algum tipo de espírito maquiavélico, principalmente quando eu era mais nova. Percebi que não só eu estaria sendo anacrônica com isso, como também injusta: sim, ele, a partir de vários pontos em sua vida, teve escolhas a fazer e talvez não escolheu bem. Fato. Mas também é fato que não posso ser anacrônica e também pensar que algumas dessas escolhas também foram fruto do tempo em que ele se formou como ser humano, e as faltas de opções que aqueles tempos refletiam. E principalmente que eu não poderia ficar julgando-o eternamente por isso, virando uma estátua petrificada com o dedo apontado pra ele (que sequer está mais aqui) enquanto não analisava que eu mesma tenho meus momentos dicotômicos na vida.
Eu posso ser feliz, e mesmo em dias tristes, posso tentar. Uma passagem de Twin Peaks que me faz pensar muito sobre equilíbrio e vida é quando o Agente Dale Cooper diz que todos os dias é preciso se dar um pequeno presente. É algo simples, e que pra mim me faz fazer as pazes com a ideia de que mesmo em dias onde algo dá errado, a pequena felicidade de tomar um café ou assistir só mais um episódio de uma boa série fazem parte do todo que compõe minha felicidade. E que essa felicidade deve existir, mesmo porque como raios eu vou saber o que é sofrer se me afogo em sofrimento? Ou o que é realmente me sentir feliz se me afogo em prazeres mesquinhos? É quase como aquele ditado do peixinho que diz que quer ir pra o Oceano para outro peixe, que perplexo, diz que ele já está lá.
Existe equilíbrio, mas que não devo ser obcecada por isso. Meu pai, quando eu era pequena, dizia muito pra mim e pra minha irmã que a gente sempre deveria procurar o caminho do meio: nem 8 nem 80. Pra minha cabecinha neurodivergente do tudo ou nada, isso parecia confuso, muitas vezes. Hoje, percebo que ele tava mais que certo e tento aplicar isso, principalmente pra minhas questões de saúde. Assim que ele faleceu de infarto, tendo relação direta com a falta total de cuidados preventivos dele, eu fiquei meio bitolada com a ideia de viver da maneira mais saudável possível - esquecendo bastante da parte POSSÍVEL. Eu virei vegana, o que foi uma das melhores coisas que já fiz, só pra, ainda assim, descobrir que minha genética me abençoou com colesterol alto crônico. Não é que não adiantou em nada parar de comer animais - adiantou e muito, principalmente para minhas crenças pessoais e éticas; mas não resolveu magicamente um medo que eu tinha. E percebi que o mesmo é válido pra várias outras coisas que notei e descobri nessa pira de tentar ser da famosa geração saúde. Nem tudo vai ter solução, jeito ou redução de danos. Outras coisas sim. E no meio disso tudo, eu não posso me culpar porque amo batata frita. Eu posso fazê-la sem o óleo, e já faço. Seria ideal diminuir meu consumo? Sim. Mas como já abri mão de tanta coisa… vou continuar comendo. Pra mim esse foi o caminho do meio que não me enlouqueceu.
E eu poderia continuar citando as tantas coisas que descobri nesses últimos 5 anos. Sinto que em meia década foi como se eu tivesse conquistado o dobro de autoconsciência e conquistas. Ainda tenho muito que preciso, quero ou gostaria de fazer, mas sei que ainda tô só começando nessa jornada. E eu também sei (e descobri) que mesmo no meio de todo conflito, toda dor e todas as nossas discordâncias, de muitas formas eu tenho uma vida pacata e até ironicamente conservadora que ele esperava que eu tivesse: casei com um bom homem, que cuida de mim de maneira literal e espiritual; tenho um bom lar, do qual eu me orgulho todos os dias e adoro passar tempo nele; não fumo, nem bebo, nem saio tanto de casa pra festas ou coisas assim - tudo realmente por opção, já que não vejo muito sentido pra mim; aprendi muitas coisas úteis, que me garantiram e garantem trabalhar e não depender financeiramente de ninguém.
É, pai. Eu meio que acabei seguindo toda cartilha que você insistia pra que eu seguisse. Pra você era sendo bela, recatada e do lar. Pra mim, é sendo bela, decidida e calminha. Pra você, vida conservadora. Pra mim, vida sem sentir que eu preciso agradar ninguém. Nem mesmo você. E obrigada por isso. 🤎

Confesso que não poli ou fiz várias edições no texto. Eu só abri o aplicativo de notas e senti uma necessidade de escrever - uma das melhores e piores sensações que existem, e quem sabe, sabe. Hehe.
Acredito que essa última e única imagem aqui, da segunda temporada de White Lotus
(e sim eu irei escrever sobre o final da atual terceira e ótima temporada também)foi um momento da série que realmente foi crescendo em mim, cada vez mais. E conforme eu vou chegando aos poucos mas com certeza aos 30, vai fazendo cada vez mais sentido também.
E quero observar que também usando essa imagem como exemplo, preciso dizer que de maneira alguma esse texto deve ser um guia ou canalizador pra você deixar de sentir as dores que alguém, mesmo que seja um pai, mãe ou parente qualquer, te causou. Pelo contrário. Acolha sua dor, mas tenta não se limitar nela. A não ser que se torne física como as minhas. Daí você pode e deve tomar analgésicos. Mas sempre lembra do motivo pelo qual você tá tomando. Ou tenta encontrar a causa raiz. Pra aí, então, nada ser apenas band-aid. ☺️
Um abraço,
- Alice
Pareceu que eu estava lendo uma descrição do meu pai e da minha relação com ele. Com duas diferenças... A primeira é que, apesar de tentar muito se encaixar e "vencer" e de todo o seu discurso baseado nisso, meu pai criou uma dívida imensa, faliu e hoje tem muita dificuldade em se sustentar e precisa de muito suporte (mais do quenele realmente tem). A segunda é que meu pai ainda está vivo, viveu tempo suficiente para me ver recebendo o diagnóstico de autismo e para, alguns anos depois, receber o seu próprio diagnóstico de autismo. Hoje ele sabe que não irá se encaixar, que seus sonhos antigos não combinam com seu real funcionamento (se é que combinam com o de alguém) e está criando novos sonhos.
Eu, por minha vez, também casada com um homem que cuida de mim de todas as maneiras possíveis, ainda me culpo por ter 39 anos e não ter conseguido construir uma carreira, não ser mais capaz de trabalhar (nem dentro de casa, nem fora das minhas antigas áreas de atuação) e não ter perspectiva de voltar a sê-lo (não só por causa do autismo, há outras questões envolvidas.)
Tenho tentado ser mais gentil comigo mesma... Mas o medo vem. Se, antes do diagnóstico, por ser sempre comparada pelos outros ao meu pai (mesmo vivendo em constante conflito com ele), eu tinha medo de acabar também falida... hoje, depois do diagnóstico, tenho medo de perder quem cuide de mim e, por não ser capaz de me sustentar sozinha, acabar também como ele, precisando de muito mais suporte do que poderei receber...
Alice, que texto LINDO! Dá de ver que você escreveu para o seu pai, me senti lendo por uma frestinha na parede.