O novo filme do cineasta Hirokazu Kore-eda é algo que passeia entre o desconfortável e o belo, como tantas outras das histórias que ele magistralmente dirigiu e escreveu - caso você ache o nome familiar mas não lembra bem do que falo, ficam três dicas essenciais pra entender a perspectiva humanista dele: ‘Assunto de Família’ (2018), ‘Ninguém Pode Saber’ (2004) e ‘Pais e Filhos’ (2013).
Todos abordando relações frágeis, por vezes solitárias e muitas outras familiares, com tramas que se intercalam de uma forma crua.
O título Monster chama atenção para aquilo que nós acreditamos ser uma palavra pesada que define pessoas que cometem atos indefensáveis, errados, bizarros e/ou criminosos. Quase nunca pensamos no ‘monstro’ fora da nossa perspectiva tão adulta e calejada pelo nosso tempo de desgraças. Para crianças, ainda sem nossa inevitável e terrível carga de conhecimento, o que são os monstros? Podem ser muitas coisas. Para uma criança com medo do escuro, um monstro pode ser uma espécime de bichinho que só ataca ao apagar as luzes. Para uma criança com medo de palhaços, pode ser um animador de festa com o nariz vermelho e redondo. Para mim, nessa idade, era o velhinho do curta exibido antes do clássico da Pixar ‘Vida de Inseto’. Para Kore-eda, a transição de quando ainda temos a tal ludicidade para a brutal e palpável realidade na hora de temermos esses monstros é o que importa.
No Japão contemporâneo, uma mãe viúva cria seu filho único em uma casa do subúrbio, mas com grande esforço. Aqui interpretada por Sakura Ando, ela trabalha, cuida do filho, da casa, e se sobrar tempo, de si. Ela é uma força da natureza quase forjada por traumas da vida e a perda abrupta do marido há anos atrás. Seu filho, que ganha vida pelo corpo e olhos expressivos do pequeno ator Soya Kurokawa, está em rápida fase de entendimento e crescimento na vida, navegando pela pré adolescência com muitas dúvidas e estranheza. Estranheza esta que a mãe preocupada percebe, e decide indagar para tentar compreender o filho que vem mudando de comportamento.
Minato é um jovem cheio de camadas. Parece que o que Kane-eda quer mostrar é cada centímetro dessa imensidão que é compreender que estamos aqui, neste mundo, e por vezes odiamos este fato. O garoto ressente a morte do pai, de certa forma parece querer confessar pra ele coisas íntimas que agora já podem mais ser confessadas. Ainda assim, em meio ao caos e ao corte improvisado de cabelo, ao sapato perdido e os pequenos potentes ataques de raiva, sua mãe parece ser uma pessoa de igual para igual para ele: logo no começo do filme, enquanto visualizam um incêndio da varanda, parecem se conectar pelo desejo de entender o que acontece e o calor do momento.
No meio do cenário, a mãe de Minato conclui que é na escola que estão as respostas pra inquietude do filho. Ela entende que há um certo professor que parece não apenas fazer bullying verbal com o filho, mas também físico. Ao se encontrar com um conselho de professores e seu algoz, junto à diretora, uma cena intimidadora: ela está cercada. Aquelas pessoas, maioria homens de meia idade, têm todo poder da situação e tudo que podem oferecer é “me desculpe”. Mas desculpas não apagam marcas, traumas ou dores, e sabendo disso, vemos diversas sequências de uma mãe em desespero, precisando retornar pra escola várias e várias vezes para, mais do que desculpas, encontrar razões e motivos. E culpa não é sentimento motriz aqui: ela quer responsabilidade.
Porém como nada aqui é óbvio, temos uma mudança seca e brusca da narrativa para vermos todos os pontos de vista da mesma história, inclusive em ordem cronológica ou não. Sem precisar de jogos de câmera inusitados, ou trilhas sufocantes de suspense, temos essa mudança quando percebemos que a história também precisa ser contada pelos ollhos do professor, que tem muito a contar e mostrar para quem assiste que de fato, a monstruosidade das pessoas não escollhe lugar, raça, gênero… ou idade. Crianças podem ser cruéis, fato - mas quem forja essa crueldade? A quem interessa cantar, trancado num banheiro escolar, uma música que apenas repete: “quem é o monstro?” A música, cantada por um colega de Minato da escola, uma criança mais franzina, menor e astututa, vai nos responder absolutamente tudo que precisamos, em uma quase virada de cenário no filme, que na verdade já tentava nos dizer há muito tempo o que precisava.
É surpreendente poder pensar fora das obviedades com Hirokazu Kore-eda aqui. É preciso que estejamos com disposição para encarar o que dói. Mas talvez por isso deixando a sessão me senti um pouco, ou um tanto, mais humana. Meus monstros próprios e os dos outros, que acolhi, puderam fazer as pazes comigo e me deixar viver. Com a sequência final, chorei pelo canto do olho em pensar que por aí nem todas as crianças tiveram a mesma sorte que eu.
Nome: Monster (2023)
Disponibilidade: Em cartaz nos cinemas
Acessibilidades: Legendas em português
Ainda sem informações de chegada aos streamings e se haverão mais recursos acessíveis.