Anatomia de Uma Queda
Uma morte misteriosa e um casal com mais mistérios ainda: só podemos assistir a orquestra cansativa, difícil e complicada que é uma relação que termina em tragédia - a culpa é de quem?
Nesta quinta-feira, dia 25 de janeiro de 2024, um dos filmes mais falados na temporada de premiações direto da França finalmente chega aos cinemas brasileiros. Em ‘Anatomia de uma Queda’, da incrível diretora Justine Triet, muito além de indicações ao Oscar o filme acumula muitas perguntas em volta de sua mística.
Em um lugar literalmente gélido, inóspito e deserto, vivem uma mulher, seu filho e seu esposo. Num dia como talvez outro qualquer, nada diferente, exceto pela jovem na sala que está entrevistando a mulher da casa. A mulher é escritora, e se chama Sandra - nada distante da atriz que também tem o mesmo primeiro nome, sobrenome Hüller. Neste dia, a profissão dela e sua relação com a academia, a escrita e sua própria vida são analisadas e perguntadas por essa jovem que rapidamente é interrompida com um alto barulho na casa, vindo do marido: um instrumental de um clássico do 50 Cent. Calma - escrevendo pode soar engraçado, porque é um tanto, mas nesse momento olhos mais atentos já conseguem notar o ar de tensão criado. A entrevista é cortada ao meio, ou começo, e a escritora frustrada não poupa a expressão desse sentimento; no meio disso tudo, o filho, Daniel (Milo Machado Graner) decide que vai sair um pouco para a gelada neve, e ao voltar também voltamos para o alto ruído e tensão que começaram em uma simples entrevista. Seu pai está no chão, com algum tipo de poça de sangue sob a cabeça, estirado, já sem vida. A mãe, ao seu lado, chora e tenta remediar.
De uma forma caótica e abrupta, o longa começa. Não vai terminar da mesma forma, já alerto: porque aqui não temos uma proposta tão comum como em muitos filmes de investigação e/ou drama como talvez o cinema norte-americano nos acostumou. Se no frio o que aquece são sopas quentes, cozidas lentamente; no cinema, Anatomia de Uma Queda faz exatamente isso conosco, talvez estando nós, audiência, já gélida de tanto dramalhão. E que aquecimento que esse filme traz.
No decorrer dos dias, que se tornarão muitos, Sandra é colocada à prova de muitas pessoas. O caso rapidamente ganha notoriedade midiática também, e aqui o mais importante é que ela possua controle da sua história e narrativa quando reafirma muito solidamente que não foi ela quem matou o próprio marido, muito embora a percepção externa possa ser o contrário. Teria Sandra se cansado? Seria ela gélida também? Foi um acidente? Foi uma queda, por si mesma? Quem a conduz, literalmente, por esse mar de questionamentos que rapidamente serão perguntas objetivas em um tribunal, é o advogado e conhecido Vincent (Swann Arlaud).
Nota para posteridade: esse homem interessantemente, mesmo com todos seus anos no cinema, nunca teve uma fã-base tão grande quanto agora, por seu status recém cravado de “hot lawyer from anatomy of a fall” (advogado gostodo de Anatomia de Uma Queda).
Vincent precisa fazer Sandra entender e provar que o mais importante nessa sinfonia difícil não é saberem se ela cometeu um crime ou não, mas sim como ela pode se livrar de uma possível condenação, que a afastaria não apenas da carreira, mas também do mundo e de seu filho. O filho que, durante todo o filme está tão presente quanto os atores veteranos e adultos, com responsabilidade tão grande (se não maior) do que a deles. Ele poderia ser uma vítima nessa situação, pois veja bem: é uma criança, sem parentes imediatos próximos, com deficiência visual, e que ouviu momentos antes de descobrir o pai caído sem vida no chão, o que ele acha ter sido uma pequena discussão. Esse ponto chave do longa, que se desenha em um roteiro extremamente competente e sólido, é o mais discutido à exaustão pela própria narrativa e seus habitantes.
Exaustão talvez possa ser também a palavra (ou sinônima) de muitas críticas, avaliações e perspectivas sobre o filme, e consigo entender e até concordar com muitas pessoas que a aplicaram - são 2h e 32 minutos de duração, que podem sim desafiar até a mais intrigada, provocada e curiosa das mentes; acredito que entre cenas genuinamente interessantes e até pequenas dicas explicativas, se perdem algumas pontas que diferente do que chamam de “pontas soltas” (quando algo nào fica claro à história), aqui não são talvez essenciais para provar o próprio ponto que se quer fazer. Mas será que também sua duração não é uma prova do que precisamos aos lidar com assuntos tão difíceis como a culpa e o medo?
Pergunto pois naturalmente, em uma proposta como essa, queremos ansiosamente, quase 100% das vezes, um final que nos dê uma visão em retrospecto para o evento chave que provocou tudo, a famosa explicação e os mais famosos ainda “finais explicados”. Me desculpe em desapontar, e isso vai sem spoilers: você não vai ter isso nesse filme. Não existe resposta fácil, principalmente de digestão, para um evento tão violento como a morte - que cada vez mais fica pra trás quando o cenário gelado vai pra trás e a sala do tribunal toma conta da tela, com seus diálogos extensos e extremamente ricos em nuances. O advogado da acusação não deixa de poupar Sandra, a atriz e a personagem, das mais sórdidas perguntas para tentar defender o seu ponto de que ela pode não ter feito com má intenção, mas certamente o matou. Quer dizer, sem má intenção é circunstancial, já que até mesmo a sexualidade dela é colocada no jogo perigoso de verdades para invalidar a sua narrativa e tentar desestabiliza-la. O impasse fica no fato de que, na realidade, o casal de fato tinha conflitos de moderada data e que ela, talvez diferente do esperado para tal situação, não esconde esses momentos difíceis em vida conjugal que estavam ocorrendo.
Os pontos mais altos na longa jornada aqui, e para mim, estão entre a incrível e magistral cena da discussão maior entre Sandra e Samuel (o marido, interpretado pelo também ótimo Samuel Theis) - que é brutal, dilacerante e ajuda nossa empatia a pender para o lado dela já que a ideia de “culpa” é bastante esmiuçada antes mesmo do fato acontecer - e a cena incrível do garoto, apenas em sua primeira infância, precisando de uma sessão privada com a juíza do caso e levantando talvez o fator mais importante nessa discussão:
‘Se não conseguimos entender o que aconteceu, deveríamos entender porquê aconteceu’.
Em mais uma pequena nota para posterioridade e para honrar a menção: a cena onde Sandra explica como e porquê o filho tem deficiência visual e a sua forma de lidar com o fato é uma pequena-joia; tirando a criança novamente de um lugar que seria fácil de colocá-la: o de vítima. Daniel aqui é um sujeito de si, de direito, e Sandra o entendia como tal mesmo após seu acidente que levou à deficiência, algo que é bem raro de se ter o retrato em um filme.
Anatomia de Uma Queda é um dos filmes mais interessantes do seu gênero, ao menos dos últimos 4 ou 5 anos no cenário do mercado. Uma história que surpreendentemente não parte de uma adaptação, como muitas tendem a fazer, mas sim sendo original e o roteiro contando também com a escrita ágil de Arthur Harari para ganhar uma vida no cinema. É até irônico talvez apontar o fato de por vezes se tornar maçante quando entendemos que a vida de nossa Sandra que sim, se tornou maçante desde a queda que estamos a acompanhar os desdobramentos. É quase como tentar achar uma agulha em palheiro, ou algo para tirar nossa atenção do fato que este é um filme onde cinema se faz por ele mesmo, por diálogo, por atuação precisa, naturalista e absurda, e principalmente por provocar o que temos dentro de nós, que talvez seja a pergunta: importa tanto assim saber de quem é a culpa? O nosso vício humano em sofrer e tentar reviver sentimentos intensos canalizados nessa necessidade de pseudoclarificação não seria mais danoso que vantajoso?
Não importa, talvez. Respostas nunca são fáceis mesmo - pelo menos as boas, inteligentes e muitas vezes as únicas possíveis.
Anatomia de Uma Queda está em exibição nos cinemas brasileiros.
Acessibilidades disponíveis: legendas em português.
Não há recursos em LIBRAS ou audiodescrição até presente momento do texto.